quinta-feira, 30 de julho de 2009

A pseudo-autoridade de Abel



Não padeço do mal das novelas, pandemia de tantos que não conseguem desgrudar da TV, naquelas horinhas padrões que, há décadas, bestificam o dito "horário nobre" das emissoras abertas da televisão brasileira.
Isso também não me faz um ultra radical incapaz de assistir, com olhar crítico, um ou outro capítulo, mesmo que seja apenas para me inteirar sobre os destinos para onde têm se encaminhado a dramaturgia midiática.
E não é que, vez ou outra, a gente se surpreende com alguma inspiração intrínseca neste ou naquele personagem?
Outro dia mesmo, o tal do Abel, o guarda, me fez pensar. Ele, que deveria ser a personificação da autoridade, acaba sendo o mais ridicularizado de todos, o abobado atrás da sua farda diária, enganado por todos, traído pelos que fingem respeitá-lo,
apegado ao seu "enorme" poder de guarda de rua, guardião de uma faixa de trânsito, ele, cego à sua própria realidade contraditória, talvez seja, na verdade, acidentalmente ou não, a crítica social mais interessante do núcleo Brasil.
Abel personifica o autêntico poder policial brasileiro. O cara que "se acha", mas que na verdade está tão aquém do poder que pensa ter, que o seu despreparo só serve´para colocá-lo em situações vergonhosas e vexatórias, como as que passa o "corno" Abel. A polícia, preocupada com os motoristas boêmios, esquece (ou se esconde) dos bandidos. A polícia, preocupada com os celulares e os pedestres, ignora os corruptos e corruptores...
Traída por seus pares, tantas vezes tendo comportamentos ímpares, a polícia de nosso país continua a exercer poderes paralelos a si mesma, funcionando tantas vezes como ingênuos maridos enganados, sempre os últimos a saber...
Vale aqui um pârênteses. Neste caso, o exemplo vem de cima, do Comandante Chefe das nossas forças armadas, ele mesmo, o mais legítimo e autêntico ignorante das questões mais escandalosas que ferem os interesses da nação.
Abel é o protótipo do idiota obcecado pela pseudo-autoridade na qual foi instituído, mas que só tem como legítimas, mesmo, a sua própria existência contraditória, suas atitudes despreparadas, omissas e prodigamente covardes.
Abel é o anti-herói e seu Caim contemporâneo é seu próximo mais próximo, aquela com quem fez a aliança mais íntima, aquela com quem se casou. Se fosse um outro profissional, Abel se contraporia à própria vocação. Fosse ele um arquiteto, sua própria mão lhe trairia. Fosse um jogador de futebol, seria traído pelos seus pés. Fosse ele um sacerdote e estaria sendo traído pela sua igreja. Fosse ele um pajé e seria traído pela própria natureza.
Assim é nossa polícia. Absolutamente contraposta ao dever cívico do heroísmo, se insere na marginalidade pra "se dar bem". Assim, há celulares proíbidos aos cidadãos de bem que dirigem seus carros e pagam seus impostos. E há celulares permitidos para que os marginais encarcerados nos presídios de segurança máxima, possam promover o caos nas megalópolis. Um belo exemplo da conduta de nossos policiais é a polícia montada. Funciona bem em todo o mundo, mas aqui o poder conferido a este batalhão os impede de colocar a bolsinha sob o rabo de seus equinos. Resultado: passeios e ruas amontoados de dejetos de seus corcéis...
O pobre Abel, caricatura da lei, é o primeiro a desrespeitá-la ao primeiro sinal de perigo. Fora da sua faixa de segurança, do seu abrigo confortável, Abel não consegue encontrar seu prumo. E Norminha se esbalda. Por que é muito fácil enganar Abel. Uma criança pode fazê-lo acreditar que todos os elogios que lhe são direcionados são, de fato, verdadeiros. Basta mirar na sua vaidade, afinal Abel é imagem, é status, se envaidece com sua posição, seu sacerdócio urbano, sua missão de colocar ordem e progresso nas coisas. E enquanto ele acha que domina a sua faixa de segurança, em sua própria casa as coisas progridem na desordem.
Lógico que não se pode generalizar. Mas garanto que as exceções a esta regra são capazes de entender a utilidade social deste desabafo...
Mas a pergunta fica no ar: o que será de Abel quando descobrir tudo? Ou será que surpreendentemente todos os outros, inclindo a devassa Norminha é que são ingênuos e Abel é que rirá de todos eles no final da história?
A resposta cabe ao autor de Caminho das Índias, não a nós. Também não cabe aos inúmeros "Abéis" que desencaminham nossas instituições, pelo país afora, nem às suas respectivas Norminhas. Muito menos aos desavisados "Indras", estrangeiros já não tão inocentes assim...
A pseudo-autoridade das leis que não se sustentam acaba na arrogância daqueles que as arrotam , mas não as praticam...
No fim dessa novela, ninguém sabe o final dos personagens, mas há sempre pistas sobre o destino de alguns. Egocentrismo: este será o Caim que vai matar Abel.

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