quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Faixa de Gaza (uma homenagem à minha irmãzinha poeta, no dia de seu natalício)




Ela sempre foi loira, mas pela velha provocação entre irmãos sempre a chamei de Gaza. Irmã de vida, casada com um dos bem aventurados irmãos que a vida me deu. E irmã de outro grande amigo, ou seja, quase da família mesmo. Nos conhecemos, eu, minha mulher e estes dois grandes irmãos desde a adolescência, quando frequentávamos o mesmo grupo de jovens e tivemos a oportunidade de curtir várias aventuras surreais juntos. Aliás, quando eu e o marido dela estávamos no mesmo carro, sempre aconteciam coisas, no mínimo curiosas...
Uma vez, em plena cidade, naufragamos numa poça que cobriu o carro até a janela. Em outra ocasião, dando carona a um padre atrasado para uma missa no centro da cidade, erramos o caminho e fomos parar na BR, saindo da cidade. Em outra, ainda, quase caímos em um barranco derrapando em estrada de terra, molhada, a bordo de um carro emprestado por um amigo comum.
Mas o foco, hoje, é ela, a Gaza.
A família dela possuía, na época deste caso, uma maravilhosa casa de frente pro mar, em Mar Grande, na Ilha de Itaparica, aonde, vez por outra, íamos juntos curtir um fim de semana ou um feriado prolongado. 
Bons tempos aqueles! Desde a fila do Ferry já era risada e divertimento sem hora pra acabar. Sem maiores preocupações na cabeça, ao chegar na ilha, nos alternávamos entre as maravilhosas praias e fantásticas explorações de recantos interessantíssimos como a centenária Igreja de Baiacu, uma das primeiras de que se tem notícia na região e a Pirâmide de Vera Cruz. Fazem parte das lembranças desta época, também, as 
visitas esporádicas à Casa de Veraneio da família Pena Cova, à casa dos doces da Gamboa, a maravilhosa Churrascaria da estrada, a inesquecível Pizzaria Bem Me Quer e o memorável restaurante Timoneiro. Enfim, passeávamos por toda a ilha, partindo do Duro, visitando os parentes de Cacha-Pregos, de Amoreiras e do Jaburú, onde sempre passávamos no Sítio dos Jesuítas. Íamos até a Fonte da Bica, passeávamos por Ponta de Areia, nos aventurávamos pela Ilhota, pela Penha, por Barra Grande e Barra do Gil, sempre aprontando algumas, assumindo o papel de turistas perdidos e nos divertindo muito num emblemático gol que, invariavelmente, estava com os documentos em atraso. Naquela época não haviam pontos na carteira nem código de trânsito e a fiscalização na ilha era extremamente frágil. Bastava ter cuidado no entroncamento que estava tudo certo. Do Mediterranè ao Grande Hotel de Itaparica, da Missa no Duro ao CTL da Ilha, do banho de mar da manhã ao mergulho na Ponte pela tarde, tudo era motivo para encontrar o que fazer, além de curtir o delicioso e produtivo marasmo daqueles dias. 
À noite, sempre buscávamos uma alternativa para estender mais um pouquinho aqueles momentos. Das mais estapafúrdias serenatas até os mais improváveis programas de índio, estávamos colados para ir aonde fosse preciso. Numa destas noitadas, o sono chegando e a sensação de que o dia iria acabar mais cedo do que deveria, alguém tem a idéia de fazer um churrasquinho...Lógico, a aceitação foi imediata, mas teríamos que ir até a estação de Bom Despacho, único local àquela altura, onde encontraríamos carvão e carne para realizar a empreitada. Enquanto as mulheres preparavam os acompanhamentos, lá fomos nós, os homens, em busca do que faltava. Éramos três no carro. Alguém lembrou que era preciso comprar álccol também, para acender o fogo. Paramos numa farmácia ainda na estrada entre Mar Grande e o entroncamento, e ali tivemos um encontro inesquecível. Um cidadão apareceu procurando 5 l de álcool. Após estranharmos inicialmente, percebemos sua aflição e descobrimos que sua família estava com o carro parado num lugarzinho bem deserto mais adiante, por falta de combustível. O marido, com cara de turista gaúcho desolado, estava com o olhar perdido, sem saber o que fazer ou pra onde ir. A esposa e os filhos sozinhos, esperando que alguma solução caísse do céu. Decidimos que era nosso dever oferecer ajuda. Como jovens cristãos comprometidos com o próximo, assumimos nossos papéis de bons samaritanos e nos colocamos à disposição para o que fosse necessário. Nos dispusemos, então, a levar a família até o hotel onde estavam e depois completar o tanque do carro com o marido.Tudo aconteceu como planejado e, algum tempo depois, o carro deles já estava ok e eles se dirigiam, felizes e extremamente gratos para a fila do Ferry. A gratidão era tamanha que fomos todos convidados para conhecer, no fim de semana seguinte, o restaurante do casal em Salvador, próximo ao Farol da Barra e especializado em carnes, aonde eles nos ofereceriam um jantar em agradecimento por tudo o que fizemos por eles. Depois de nos despedirmos do simpático casal e seus filhos, com aquela sensação de dever cumprido no peito, resolvemos, então, voltar até a casa para explicar às digníssimas companheiras o motivo do nosso atraso. Elas deveriam estar preocupadas com nossa demora. Quando chegamos, ainda comemorando a boca livre garantida da semana que viria, as encontramos quase dormindo em frente à televisão. Diante daquela situação, ficou decidido em consenso que iríamos todos à caça da carne e do carvão, pois o risco de, na volta, encontrá-las nos braços de Morfeu era eminente.   
Partimos para nosso destino com o carro cheio. Seis pessoas num golzinho nos fazia parecer uma lata de sardinhas. Animados com o jantar conquistado, fizemos uma viagem rápida até o local onde compraríamos a carne. Ao sair do carro, apressado para pegar o açougue ainda aberto, não em dei conta do desespero de quem estava atrás, imprensado entre quatro pessoas e bati a porta com toda a força. No mesmo momento, nossa heroína, a gaza, estava saindo do carro. Resultado: a quina da porta enfiada em sua têmpora, bem perto do olho, e o sangue a escorrer por todo seu rosto. Momento de desespero total. A primeira coisa que pensei é que eu a havia cegado. O irmão dela tirou a camisa e amarrou em sua cabeça, como uma faixa (a faixa de gaza) e o churrasco foi pro espaço, junto com a carne o carvão. O desafio agora era encontrar gelo e ver qual haviam sido os danos. Conseguimos o gelo e graças a Deus, aos poucos tudo foi se acalmando e percebemos que não era nada mais grave. Não foi no olho e o dano era superficial. Uma pequena marca na pele que ela carrega até hoje como lembrança de uma noite especial.
Para finalizar, na semana seguinte fomos todos ao restaurante daquele que havíamos amparado. Ao chegar, já encontrei os quatro amigos sentados e por uma destas infelizes inspirações do além, abri minha boca para, educadamente, fazer um jogo de cena e dizer que só me sentaria ali se pagássemos a conta. Resultado? O cara não só aceitou como apresentou uma dolorosa que fez com que tivéssemos que tirar dinheiro da poupança para pagar...
Vivendo e aprendendo... Me senti em plena faixa de gaza naquele dia, entre o bombardeio dos olhares fulminantes de meus amigos ("por que voce tinha que abrir a boca?!") e a expressão mesquinha e satisfeita daquele sujeito miserável!  Quase perco ali a minha fé na humanidade! Seria um castigo pelo ocorrido em Gaza? A primeira coisa que veio à minha cabeça foi a de colocar a têmpora dele à mercê da quina assassina da porta do golzinho, mas segurei a onda. Ainda bem. não valeria a pena. Poucos meses depois o restaurante do cujo faliu! Quem sabe uma maldição de Gaza?  
Para consolar, somente estas lembranças maravilhosas, de um tempo que não volta, mas que vale sempre celebrar, como a sua vida, querida Gaza! 
Um brinde às marcas do que se foi e aos sonhos que vamos ter! 
Um brinde à nossa amizade, que se perpetua através de nossos filhos! 
Um brinde às cicatrizes daqueles  dias felizes, pra sempre gravadas na pele e no coração de todos nós!

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