segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Das Monarquias da Soterópolis




Não sei se pela vocação do próprio nome ou pelo incrível potencial criativo de sua gente, a capital da Bahia nos surpreende pela quantidade de curiosidades que parecem brotar de todos os cantos da cidade e de sua história.
Conhecida como a cidade de todos os santos, como a capital do sincretismo religioso, como a Roma Negra, como a cidade das 365 igrejas e das “trocentas” ladeiras, como casa da Folia, como a cidade festeira,  como a Primeira Capital do Brasil, Salvador bem que podia possuir também o título de Cidade da Monarquia. É claro que Momo impera entre os tantos monarcas que encontramos em cada esquina da Soterópolis. Mas a diversidade de títulos realmente impressiona! Espanta não só pela quantidade, mas pela qualidade dos diversos monarcas que encontramos distribuídos, aqui e ali, ostentando uma nobreza no mínimo questionável na maioria das vezes.
Do Rei da Pamonha ao Rei dos Radiadores, do Rei das impressoras ao Rei das Homocinéticas, um aglomerado de reinos extremamente simples, muitas vezes rudes, vai saltando aos olhos do visitante mais distraído. Há o Rei do Acarajé e o Rei do Hamburguer, o Rei do HotDog e o Rei dos Hortifrutis, o Rei do Mate e o Rei do Milk Shake... Há reis em todas as partes da cidade, para todos os gostos. Rei dos parafusos, Rei das cópias, Rei da pesca, Rei das malhas, Rei das armas, Rei dos salgados, Rei dos alarmes, Rei das fantasias, Rei dos cabos, é rei que não acaba mais. Do rei dos uniformes ao Rei das fardas, alguns parecem querer competir num duelo onde nunca fica claro quem, de fato, possui o real pedigree para declarar-se soberano de alguma coisa. Aliás, se depender de algum tipo de certificação, por exemplo, fica bem difícil legitimar quem quer que seja...Na Bahia todo mundo pode ser rei, até um desconhecido na esquina:
-Ô mo(meu) rei, qualé di mesmo?
No seu dialeto próprio, o baiano interage com o fulano ou o sicrano sem nenhum estresse!
- Diga aí meu rei! Tudo nos conformes?
E já que todo mundo pode ser rei, por que não estender os títulos para o resto da família? A Princesa das baterias, A Princesa dos Vidros, a Rainha do Abará, o Príncipe dos Esportes, O Rei das Flores, o Rei do Pãozinho, o Rei dos pneus, cada um na sua, todos monarcas autocoroados sem qualquer cerimônia, ritual ou brazão hereditário. Há até a oficina três reis, vejam só!Talvez por isso hajam também as variações, as mais incríveis por sinal: Ray do Sinuca, Boteco do Ray, Ray das coxinhas e, talvez, a mais absurda delas: Cabana da Ray. Neste caso fico pensando se seria mesmo Ray ou se não erraram a grafia de Rai...Afinal, eu não sei vocês, mas, particularmente, eu não conheço nenhuma Raymunda... Ou seria Reimunda?
Epa Rei, meu pai... Até em terreiro de candomblé a realeza entende de baixar! E nas lojas que vendem seus artefatos, pode conferir: o Rei dos Atabaques, o Rei das Ervas, o Rei do Bode e por aí vai...
E a gente segue em nosso tour real, do Rei do Pastel ao Rei das Embalagens, do Rei das Placas ao Rei dos Guardanapos, do Rei da Pipoca ao Rei das Engrenagens, do Rei dos Armarinhos ao Rei dos esparadrapos vão se construindo rimas, estrofes, poesias, baladas, quem sabe até um samba reggae em homenagem ao Rei Bob Marley... Aliás personalidades reais é que não faltam por aqui... De Durvalino meu rei a Raul, o Rei do Rock Nacional... Da Rainha da Axé Music, La Mercury à Iemanjá, Rainha do Mar...Das princesas do Ilê Ayê à Deusa do Ébano... É um desfile sem fim de entidades da realeza com séquitos e mais séquitos dispostos a lhes seguir...Até um Sereio já andou reinando no noticiário querendo subtrair de Odoyá as águas de Catussaba... quem sabe inaugurando um principado por aquelas bandas... Vizinho de Vinícius de Moraes, o Rei de Itapoan, o preto mais branco do Brasil, que sabiamente declamava em sua canção repleta de poesia sincrética:
- Meu Pai Oxalá é o Rei, venha me valer!
Fico pensando se dia desses não encontrarei por aí um Rei da Espinhela Caída, uma Rainha da Unha Encravada, um Príncipe da Diarreia ou uma Princesa do Olho Gordo...Não seria de estranhar...
A última e, talvez, mais representativa e emblemática figura que encontrei, um Guia Turístico em plena praça da Sé que encontrei na Igreja de São Francisco... Peguntou meu nome e eu disse, perguntei o dele e me respondeu:
-Meu nome é Carlos,rei dos nomes!
E diante da minha estupefata expressão de "naõ estou entendendo nada", explicou serenamente:
- Começa com C de Cristo, Rei dos Homens, depois vem o A de Amor, rei dos sentimentos, seguido pelo R de Rosa, Rainha das flores, de L de Leão, rei dos animais, O de Ouro, rei dos metais e S de Sol, rei dos astros...
Quase me curvei diante da figura, reverenciando tanta majestade! Só poderia ser aqui em Salvador....
Se "em terra de cego, quem tem um olho é rei!", como devem se sentir os "quatro olhos" como eu?
Mas não poderia ser diferente. Em uma cidade cujo nome é uma homenagem ao Salvador, conhecido como o "Rei dos reis", a realeza tinha mesmo que imperar, do mais nobre endereço ao bairro mais popular!
Aqui, na cidade mais singular e plural do planeta, cair na real é a lei!
Então "se prante"!Tá ligado meu rei?

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